Dahmer: um olhar sobre a série e o que não mudou na polícia de Milwaukee

Achar que Dahmer: Um Canibal Americano, da Netflix, romantiza o serial killer é um erro — e a polícia não aprendeu com os erros.

Andréia Martins
8 min readOct 3, 2022

Dahmer: Um Canibal Americano é o mais novo hit da Netflix. Eu conheci a história de Jeffrey Dahmer primeiro na HQ Meu Amigo Dahmer, do cartunista Derf Backderf. Fã de séries criminais, tinha poucas HQs sobre o tema e o assunto me interessou. No entanto, depois de ver a série, devo dizer que o relato na HQ não dá dimensão do que aconteceu depois. Tudo é muito pior. E, com isso, duas questões são cruciais para mim: vi muitos comentários de que a série romantiza Jeffrey Dahmer, algo do qual não poderia discordar mais. E segundo: essa história envolve minorias, má conduta policial e ajuda a entender os acontecimentos dos últimos anos nos Estados Unidos envolvendo violência policial e cidadão negros. As autoridades, nesse tema, parecem se recusar a aprender com os erros.

A HQ de Backderf tem uma narrativa mais silenciosa, lenta, intercala desenhos com textos corridos com informações obtidas com depoimentos de conhecidos, antigos professores, arquivos do FBI e a cobertura da mídia. Conhecemos ali um Dahmer que parece não achar seu caminho durante a adolescência. Quer atenção, se juntar aos outros, mas não consegue. Ele não é uma pessoa estável, costumava fingir surtos epilépticos, exagerava na bebida antes mesmo de ir para a aula e já mostrava uma fixação em dissecar animais atropelados que encontrava perto de casa (o que na série é mostrado como algo que ele fazia junto com o pai, para passarem tempo juntos). Ali aparecem os primeiros indícios de uma mudança, a passagem daquele estado de confusão comum que é a adolescência para muitos para um comportamento que seria permanente e crônico em Dahmer.

Os dois tomaram rumos diferentes, e Derf só voltaria a saber do amigo pelo noticiário, anos depois. Em 1991, os crimes de Jeffrey Dahmer vieram à tona: necrofilia, canibalismo e uma lista de pelo menos 17 mortos, entre homens adultos e garotos. O primeiro assassinato teria acontecido meses após a formatura no colégio.

As vítimas de Dahmer: Curtis Straughter, Steven Mark Hicks, Richard Guerrero, Jeremy Weinberger, Jamie Doxtator, Ricky Beeks, Oliver Lacy, Errol Lindsey, Konerak Sinthasomphone, Ernest Miller, Anthony Hughes, Joseph Bradehoft, Matt Turner, Anthony Sears, David C. Thomas, and Edward W. Smith

Todo esse comportamento “fora do padrão” pode ser atribuído em parte ao isolamento social (Dahmer era constantemente importunado pelos colegas que o achavam estranho) e à situação com os pais, ausentes e constantemente se desentendendo. Depois de descobrir as atrocidades do filho, Lionel Dahmer fica ao lado do rapaz até o fim, mas fica tentando achar culpados e se responsabilizando pelas atitudes do filho (ele depois escreve um livro sobre a relação do dois). Mas também é difícil jogar toda a culpa na relação familiar turbulenta que eles tinham. Há a questão individual, ou seja, cada um de nós têm suas vontades e ímpetos particulares, para o bem e para o mal. Uns conseguem se controlar, deixar para trás e outros não. E há também a sociedade: todas essas histórias só tiveram o fim que tiveram porque temos uma parcela de culpa em cada ato de violência que nos rodeia. Nenhum de nós está isento dessa culpa. Somos culpados a cada piada machista, racista e homofóbica à qual não reagimos, quando fazemos vista grossa a situações claras de violência, quando somos preconceituosos, fazemos e rimos de bullying, quando não oferecemos ajuda, e por aí vai. E não que seja simples tomar a frente em todas essas situações. Muitas vezes não é.

Capa e abertura do livro de Lionel Dahmer, pai de Jeffrey Dahmer

Dahmer nunca se mostrou alheio ao que fazia. Apesar de estar quase sempre embriagado, ele tinha consciência dos seus atos (como ele mesmo disse ao advogado, alegando que não se declararia um incapaz, pois sabia o que estava fazendo).

Mas o que nos leva então a criar mais empatia com a história dele do que com a história de Glenda Cleveland (1954–2010), por exemplo?

Me incomodou um pouco o fato de ter lido algumas críticas dizendo que a série romantizou o serial killer. Depois de centenas de séries de true crimes e ficções, o que posso dizer é que o vilão sempre será uma figura interessante. Afinal, tudo gira em torno deles nessas histórias e quanto mais sabemos, mais nos aproximamos, mais procuramos entender o que acontece. Daí a criar uma empatia e justificar os fatos… é preciso frear! O que essas histórias nos mostram é que os sinais sempre aparecem. Seria possível prever ou evitar tamanha tragédia? Provavelmente. Mas para isso seria preciso que alguém estivesse de olho em Dahmer. E não havia ninguém.

Mas depois da série, parece que há uma tentativa de justificar seus atos, com diferentes interpretações para as suas atitudes. Por exemplo, a cena da série em que ele vai a uma reunião de amigos e familiares que estão buscando Tony Hughes (deficiente auditivo e uma das vítimas de Dahmer) foi entendida por muitos como prova de um arrependimento, quando soa muito mais como a necessidade de um criminoso de estar perto da vítima de alguma forma. Dahmer se alimentava das pessoas de forma literal, como que para preencher um vazio.

Glenda simboliza muita coisa nessa história. Na história real, ela não era a vizinha de porta de Dahmer, mas morava no prédio ao lado. Foi chamada pelas sobrinhas quando estas viram Dahmer carregando Konerak Sinthasomphone, de então 14 anos, desacordado. Ela insiste com a polícia de que aquela não é uma situação normal e depois ainda liga para a polícia para reforçar o alerta (ouça aqui a ligação).

Glenda é uma voz não ouvida (ao contrário do jovem branco que denuncia a filha dela por ‘agressão’ depois de ela derrubar a câmera dele, enquanto ele tirava fotos do prédio de Dahmer. A polícia apareceu em minutos para prendê-la) e que fala em nome de vítimas invisíveis para as autoridades (jovens negros, moradores de bairros periféricos dominados por gangues, imigrantes e homens gays durante o início da epidemia de Aids). Vítimas que seguem invisíveis até hoje.

A polícia de Milwaukee e a questão racial: uma história de erros sem aprendizados

Na outra ponta da história, temos o trabalho mal feito de policiais e as consequências que este tipo de conduta traz. A dupla que prendeu Dahmer, mas que anteriormente deixou um menor com o criminoso, foi despedida e depois reintegrada com honras e benefícios financeiros.

A cena em que Tracy Edwards sai correndo do apartamento de Dahmer para pedir ajuda é das mais angustiantes para mim. Eu imaginei que ao encontrar os policiais o pior aconteceria. Fui surpreendida.

No entanto, o histórico da polícia de Milwaukee com relação a abordagem de pessoas negras é problemática e acontece muito antes do caso de George Floyd (homem negro que morreu asfixiado por um policial em Minneapolis, em 2020, durante uma abordagem).

Em 2014, Christopher Manney, um policial branco, foi até um café depois de receber uma chamada de funcionários do estabelecimento que reclamaram que Dontre Hamilton, um morador de rua, estava dormindo perto do café. Ao averiguar Hamilton, o policial declarou que os dois começaram uma briga e ele perdeu o controle do cassetete. Manney disparou 14 tiros em Hamilton. Foi absolvido pela Justiça que considerou que o policial agiu em legítima defesa.

Outros casos semelhantes se repetiram, gerando noites de protestos motivados pela absolvição de policiais e toques de recolher. Como o caso do agente da polícia que atirou nas costas de um homem negro em Wisconsin, em 2020, pouco depois do caso de Floyd. O momento foi registrado em vídeo e ocorreu quando Jacob Blake entrava no carro. Ele levou 7 tiros. Tudo testemunhado pelos filhos. O policial Rusten Sheskey foi liberado pela Justiça.

Sheskey disse que atirou em Blake depois que ele ficou alarmado por ter uma faca em sua posse. Essa afirmação se torna ainda mais impressionante quando você considera que a polícia de Kenosha permitiu que um adolescente branco, Kyle Rittenhouse, andasse com um AR-15 durante um protesto a favor da polícia após o tiroteio de Blake e depois ainda usou a arma para matar dois manifestantes antirracismo (o jovem foi absolvido pela justiça e ainda pediu a arma de volta).

Sem querer afirmar aqui que privilégio branco explica as diferentes condutas da polícia, ao mesmo tempo não tenho certeza se há outra explicação plausível.

O caso de Dahmer, de certa forma, reflete isso e deveria ter sido um exemplo a não ser seguido: descreditar vozes das minorias e dar chance a um suspeito, um jovem branco, que por isso parece ter levantado menos suspeitas do que outros teriam.

Um relatório divulgado em setembro deste ano pela ACLU (American Civil Liberties Union) de Wisconsin mostra que o Departamento de Polícia de Milwaukee tem 4,8 vezes mais chances de parar um morador negro em idade de dirigir do que um residente branco em idade de dirigir. O olhar diferente para a população negra continua.

O relatório também mostrou que:

  • Os moradores negros têm 9,3 vezes mais chances de serem submetidos a uma revista do que os moradores brancos;
  • Residentes negros são 18 vezes mais propensos do que os brancos a serem submetidos a uma abordagem;
  • Uma vez que a abordagem é iniciada, os moradores negros têm 3,1 vezes mais chances de serem revistados do que os brancos.

“O MPD concordou com esse acordo (acordo que reviu a atuação durante as abordagens policiais) há quatro anos, e sua prática de fazer batidas e revistas inconstitucionais e racistas continua difundida. Como o relatório demonstra, o fracasso do MPD em alcançar a conformidade reflete o policiamento racialmente díspar que os moradores negros de Milwaukee experimentam e contra o qual protestam. O povo de Milwaukee ainda não está recebendo policiamento legal e equitativo” — Emma Shakeshaft, pesquisadora advogada da ACLU de Wisconsin

Ou seja, na realidade, tudo está pronto para que histórias como a de Dahmer, de Floyd e afins se repitam. E é sobre isso, sobre transformar essa realidade racista em uma realidade apenas justa, em que a nossa empatia deveria estar focada.

--

--

Andréia Martins
Andréia Martins

Written by Andréia Martins

Jornalista e sommelière brasileira morando em Lisboa. Escrevendo umas coisas pelo caminho | https://linktr.ee/andreia_sm

No responses yet